SOMENTE MAIS UMA HISTÓRIA

     Era tarde naquele dia e chovia torrencialmente. Quem imaginaria que uma chuva daquelas iria cair em pleno carnaval? Coisas de São Pedro e do pessoal lá de cima. Deviam ser contra o povo se divertir por tantos dias seguidos. Era um povo sofrido, que só tinha uma semana como aquela no ano e tudo, afinal, terminava na quarta-feira. 

    Nilzinha era menina ali da região e havia saído para a capital logo que completou quinze anos, sua madrinha havia cumprido a promessa de leva-la para estudar na cidade grande. Ela poderia estudar para ser professora e depois voltar para trabalhar na escola da roça, ajudando sua velha mãe que deu o duro para cuidar dela e dos quatro irmãos sozinha. Isso ela havia prometido para a mainha, desde muito pequenina, logo que o pai, aquele traste, havia ido embora, abandonando a família em meio à seca. Dos quatro irmãos com quem cresceu, Tonico era falecido – menino bom era aquele – a vida parece que não gosta de gente boa, pois a morte chegou cedo demais. Foi apartar uma briga no campo de futebol da vila quando voltava do trabalho em uma construção, e foi esfaqueado, pouco antes de fazer dezessete anos. Foi assim que Dona Benta perdeu seu primeiro filho, o primogênito, aquele que começara a trabalhar e ajudar nas despesas da casa. 

    Luíz, o terceiro filho pôs os pés na estrada cedo. Inconformado com a dureza daquela terra, pegou uma carona em um caminhão que passava por lá e nunca mais deu sinal. Pedro, o filho do meio, se enrabichou por uma mulata e foi morar com ela perto de Feira de Santana, aquele ingrato nunca vinha ver mainha, não ajudava com um tostão e parece que esqueceu o caminho de onde saiu. Restou Juninho, menino frágil que teve paralisia quando criança, vivia doente e dava trabalho dobrado para aquela santa mulher que só fazia trabalhar. 

    Nilzinha havia voltado de Salvador para passar o carnaval, precisava ajudar um pouco sua mãe a cuidar do Juninho, mas a verdade era que estava triste e cansada. Trabalhava muito na casa da madrinha, a família era grande e ela cuidava sozinha de toda casa – lavava, passava, cozinhava e sempre estavam dizendo que tinha vida boa. Quase não tinha tempo para estudar, começava a duvidar que conseguiria se formar professora. A tristeza maior era por culpa de Henrique, seu primo. Tinha dezenove anos, era bonito que só ele, tinha muitos amigos, tocava cavaquinho numa banda e vivia lhe jurando amor. Mas andava arredio, não a procurava mais, logo agora que ela lhe entregara o seu corpo. Tinha acreditado que ele a amava e finalmente se deitara com ele. Nas primeiras semanas  ele não saia de casa, voltava a todo instante e perdia aula para ficar com ela. Se deitavam a todo instante, atrapalhando os afazeres dela. Mas havia mudado desde o dia em que ele a vira se sentido mal. Cabisbaixo, dormia fora, não a procurava nem dizia mais do seu amor. 

    Iria assuntar se Jô, sua amiga de infância, podia ir com ela na Véia. Jô era da mesma idade que ela, mas parecia muito mais velha. Era sabida e rodada nas mãos dos rapazes da região. Muita gente falava que ela não era mulher para casar e que morreria assim, solteirona. Dona Zica haveria de saber o que estava acontecendo, era cartomante conhecida, rezadeira de primeira e tinha clientes que vinham de longe, nada escapava à suas cartas. Quando chegaram tiveram receio que a Véia não fosse atender porque era véspera de quarta-feira de cinzas. A chuva tinha diminuído muito, porém o lamaçal vermelho era enorme e escorregadio, foi uma dificuldade para chegar até ali. Dona Zica fez com que as duas entrassem no quartinho dos fundos de chão batido, de paredes de adobe e telhado de sapê, que tinha várias goteiras. 

    — Iniciou a velha cartomante – As cartas não mentem nunca, mas você já sabe o que veio perguntar. Tô vendo aqui uma vida difícil, hein? Coisa de amô e de homi safado. Tem trabaio feito viu minha fia?     As duas jovens se olharam como se dissessem uma para a outra a Véia era boa mesmo e Jô começou a repetir o que a amiga havia contado durante o percurso. Falou do trabalho da amiga, do primo, de seu sumiço, de seu mal-estar e da velhinha trabalhadeira, que era a mãe de Nilzinha. Dona Zica ouvia tudo e ia confirmando tim-tim por tim-tim nas cartas. 

    — As cartas não mentem, minha fia. Tá aqui ó: Valete de paus, rapaz jovi e safado. Tem essa dama de oro aqui, mulher rica fez trabaio pra tirar ele de vosmicê. E não vai ser fácil de disfazê não. Tem muitos presentes pros Orixás, ocê vai ter que gastar se quiser ele de vorte, minha fia. E tem mais vosmicê tá de barriga, esse mar istar num é ôtra coisa. 

    Naquele momento, pareceu que o sangue fugiu todo do corpo de Nilzinha, ela ficou branca, as pernas tremeram e os braços perderam a força. Que diacho ela iria fazer agora? Como iria contar para mãe e para a madrinha? Como iria se formar pra professora e ajudar a mãe e o Juninho? Pagou a consulta e deu o resto do dinheiro que tinha, para Dona Zica começar a desfazer os trabaios que a dona rica fez pra tirar seu homi safado. Manteve apenas o dinheiro necessário para voltar para a casa da madrinha. Saíram de lá como se a tempestade que caía pelo mundo fosse apenas na cabeça dela. A véia não lhe deu qualquer conselho de como deveria proceder. Estava solta, sozinha e perdida. 

    Em meio a tantas tragédias, sua mãe não pareceu ter percebido o motivo de tanto chororô e apenas deu a sua benção na hora que ela partiu para Salvador. Sua madrinha era mulher direita, provavelmente ficaria contente com o netinho. Certamente iria mandar Henrique tomar jeito de homem e se casar com ela, iria quebrar o feitiço da “moça rica” na marra, talvez nem precisasse voltar em Dona Zica pra terminar a mandiga. Eles reformariam o quarto do primo e colocariam o berço ali, até que ele começasse a trabalhar e pudessem mudar para uma casa só deles. No fim, sua mãe ficaria contente e ela poderia ajudá-la. 

    Quando chegou em Salvador já era tarde da noite, seu Julio abriu apenas o canto da porta, entregou-lhe uma cédula de cinquenta reais e disse: 

    — Você não pode ficar mais aqui, pegue este dinheiro e apanhe um táxi pra rodoviária. Sua madrinha não quer lhe ver nem pintada de ouro. Como você foi trair a confiança da família que te acolheu? Eu disse que isso ia acontecer. Desde o dia que eu te vi pela primeira vez falei pra sua madrinha que você não me inspirava confiança. Taí! Olha no que deu! Seduzindo os filhos dos outros. – e fechou a potra com força. Outra vez o sangue deixou aquelas veias. Ao sair dali, ela perdera o rumo da vida, não podia voltar para casa sem ter virado professora e com bucho cheio. Aquele era todo dinheiro que tinha e não era suficiente para voltar para casa, se assim tivesse decidido. 

    Às vezes ela ainda vê Henrique passando de carrão pelas bandas da Pituba, cada dia tem uma mulher desfilando com ele. É lá que ela agora trabalha, conhecida como Ritinha, faz ponto esperando por clientes e sonhando em se formar professora.

 

Livro: Na Rota dos Contos  - ONDE HÁ A ROSA DOS VENTOS

Autor: Edson Brasil Castro

#edsoncastro_escritor 

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